sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Ofício de Ser Ator

O OFÍCIO DE SER ATOR
Por: Eva Wilma


O ator se comunica de corpo e alma inteiros no espaço cênico livre. Eu digo livre porque pode ser no palco, pode ser no picadeiro, pode ser no teatro de rua, pode ser até mesmo numa sala. Mas será sempre um ser humano que se comunica diretamente com outros seres humanos.

O teatro para mim é uma coisa sagrada. Ele pertence ao ator. Embora você passe pelo texto que é a partitura, pelo diretor, que é o maestro, na hora da execução da obra, o ator é pleno em cena aberta. Ele é absoluto. Por isso, dizemos que no teatro, você pode ser um rei, uma princesa, uma mendiga, pode ser tudo. E você reina, no espaço da imaginação e da criatividade. Esta realização é indescritível. Então, a gente diz que o teatro é do ator.

“Quem vive na ilusão de que entrar na televisão é fácil, primeiro tem que estudar muito.”
No cinema, quem realiza mais é o diretor, porque se filma por cenários. Às vezes, o trabalho começa na cena final do filme, depois passa para a cena do meio. Na televisão também é assim e de uma forma absurdamente rápida. Costumamos dizer brincando que o teatro pertence ao ator, o cinema ao diretor e a televisão, em última análise, pelo menos a TV aberta, ao patrocinador.

A carreira do ator, se colocar em termos percentuais, é constituída de 10% de talento, vocação, intuição; 85% de trabalho, perseverança, esforço, disciplina e muito estudo; e 5% de sorte. O ator tem que aprender seu ofício na escola. Poderá até escolher um bom curso profissionalizante mas o ideal, após a conclusão do Ensino Médio, é prestar vestibular e entrar para a Escola de Arte Dramática – EAD, aqui em São Paulo, que fica na ECA – Escola de Comunicação e Artes, na USP.

Tem que começar por aí, e saber que é uma carreira dificílima, até porque não existe mercado de trabalho. Tem que ter muito idealismo e muito pé no chão. Ao mesmo tempo que faz a faculdade, tem que tentar praticar. Como? Pesquisando os grupos de teatro profissional e alternativos e formando seu próprio grupo de teatro, seja na escola, no clube, em casa... E exercer seu ofício. Tem que praticar.
Então, as pessoas que escrevem “me arranja um papel” e vivem naquela ilusão de que entrar na televisão é muito fácil, primeiro, têm que estudar mesmo e têm que se formar ator, e isto é um sacrifício muito grande em nosso país. E precisam ter consciência de que em nosso mercado há uma guerra de faca e foice. Viver do ofício de ator em nosso país é muito difícil, é muito complicado. Aqueles que sobrevivem disto são heróis. E eu me coloco entre eles e tenho muito orgulho disso. De ter conseguido sobreviver, muitas vezes até como arrimo de família, exclusivamente do meu ofício de atriz.

Mas a custa do quê? De muitas vezes ter feito teatro e televisão simultaneamente. De encarar a dupla, a tripla e a quádrupla jornada de trabalho e mantendo a seriedade. Em 1976, às vésperas da TV Tupi falir, eu me propus a produzir uma peça, pela primeira vez, de minha iniciativa. Porque até então eu tinha co-produzido circunstancialmente. Eu queria estrear com um texto que me falasse à alma. Não consegui texto brasileiro porque nós ainda estávamos em plena censura e a maioria dos bons autores brasileiros censurados. Em minhas mãos caiu o "Esperando Godot", de Beckett, na tradução de Flávio Rangel. Imediatamente me apaixonei. O texto tem a poética do circo, tem a essência do teatro do absurdo, que fala sobre o nada, mas que mantém acesa a utopia. Porque um texto que fala que o Godot não veio hoje, mas vem amanhã sem falta. A palavra Godot vem de Deus, God, e é unida também com Charlô, de Charles Chaplin.

É por aí que Beckett inventou este personagem que na peça não aparece e a gente passa o tempo todo esperando. Este God, tão poético como os personagens todos que o Chaplin criou. Durante todo o espetáculo espera-se por ele e vem sempre um emissário que diz: “O senhor Godot mandou dizer que não pode vir hoje, mas que virá amanhã sem falta”.

A idéia de montar o texto inteiramente com mulheres foi a primeira no mundo. Convidei Lílian Lemmertz para minha parceira, e nos convidamos Antunes Filho para dirigir e Marcos Franco para co-produzir conosco. Contratamos duas atrizes geniais, Lélia Abramo e Maria Iuma. Sem conseguirmos casa de espetáculo em São Paulo e no Rio, nas datas que desejávamos, resolvemos estrear em Brasília. Tenho a grata lembrança, em meus recortes de como a imprensa saudou o nosso espetáculo. Uma das manchetes era “As flores e frutos de Eva”. Eles estavam se referindo à ousadia da concepção do nosso espetáculo.

“Evoluir enquanto ator é não permitir que seu trabalho se cristalize e vire uma mesmice.”
O nosso Esperando Godot equivalia ao Esperando a Democracia. Até mesmo o texto do Antunes, no programa da peça, se entitulava Esperando a Democracia. Isto em maio de 1977, em Brasília, foi um acontecimento! Durante toda a semana, o público lotou o teatro, os estudantes vibraram.

De Brasília voamos direto para Manaus e de lá viemos descendo. Tínhamos o apoio de passagem para a equipe, transporte para cenários e os teatros agendados. E só. Em todas as cidades, eu me dirigia à Secretária de Cultura para pedir a estadia. Éramos uma equipe de nove pessoas. Fizemos 17 capitais e mais 13 cidades. Em quase todos os lugares, consegui estadia total. Houve uma só cidade, João Pessoa, na Paraíba, em que o secretário pediu em troca três palestras para os grupos de teatro locais.
Considerei como um presente a mais, esta grande troca. Hoje, existe lá um grupo famoso no mundo com um espetáculo chamado “Vau da Sarapalha”. Foi premiado no exterior. É um grupo idealista formado por atores que, provavelmente, para ganhar a vida, têm que exercer outros ofícios também.


Então, o que é ser ator? Ser ator é isto. É essa batalha toda. É se equilibrar na corda bamba mesmo.

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