Diretor ‘marginal' na época do Cinema Novo — final da década de 50 até início dos anos 70, é de Paulo César Saraceni, a famosa frase: “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. Entretanto, esse cineasta carioca, 69 anos, assim expressou o ideal estético do momento pela coragem em desafiar o sistema, não apenas pela necessidade de dar resposta à forma, a um estilo ou de popularizar campanhas que favorecessem determinados círculos ou projetos.
“Falei isso para o Glauber em um momento de conversa informal. Enfim, ele gostou e espalhou de uma maneira fantástica, tanto que acabou gravada como sendo uma idéia original sua. Mas, em 1976, em seu livro Revolução do Cinema Novo, revelou que a frase era minha, porém, pode ser muito bem nossa, porque foi extraordinariamente divulgada por ele. Glauber era como um irmão para mim”, declara.
Saraceni foi um dos precursores do cinema novo, e entre os seus mais importantes trabalhos estão os longas-metragens Porto das Caixas (1964); Integração racial (1964); O desafio (1965); Capitu (1968); A casa assassinada (1971); Amor, carnaval e sonhos (1972); Ao sul do meu corpo (1982); Natal da Portela (1988); Bahia de todos os sambas (1996); O viajante (1998); Banda de Ipanema — a folia de Albino Pinheiro (2000), e os curtas Caminhos (1957) e Arraial do Cabo (1962).
Já perdeu a conta das premiações que recebeu e, graças a uma delas — pelo filme Arraial do Cabo — foi contemplado com uma bolsa de estudos que lhe deu o direito de frequentar o Centro Experimental de Cinema em Roma, na Itália. Entre seus prêmios estão: Candango de Melhor Filme e também Melhor Diretor, no Festival de Brasília, por A casa assassinada, Candango de Melhor Roteiro, no Festival de Brasília, por Capitu e Fipresci no Festival de Moscou; Especial do Júri, no Festival de Brasília e Festival de Cinema Brasileiro de Miami, pelo filme O viajante.
Saraceni iniciou sua carreira no cinema de forma muito curiosa: Era jogador de futebol — juvenil do Fluminense, em 1950, e conheceu um certo diretor do clube, que era ninguém mais do que o romancista (autor de quinze romances, reunidos sob o título geral de Tragédia burguesa), crítico de cinema e literatura, ensaísta político e tradutor, Otávio de Faria, fundador do legendário Chaplin Club, organização destinada ao estudo dos problemas do cinema.
“Fui pentacampeão no juvenil e estava muito empolgado como jogador, mas o contato com o Otávio me levou para o lado do cinema. Admirava-o muito por ser uma pessoa fantástica e saber muito sobre as coisas da vida. Devido à convivência, passei a aprender cinema com ele e, aos poucos, fui me desligando do futebol, como jogador, mas ainda sou muito apaixonado por esse esporte”, confessa.
A princípio, Saraceni pensava em escrever para o cinema, fazer críticas, porque não se imaginava dirigindo um filme. Depois, teve uma passagem pelo teatro, fazendo assistência de direção. Ficou por lá algum tempo, mas o seu negócio era mesmo o cinema e, decidido, realizou o seu primeiro vídeo: o curta-metragem Caminhos, que participou do Festival Internacional de São Paulo, em 1957.
Logo depois, se uniu com o também cineasta Joaquim Pedro de Andrade, diretor do célebre Macunaíma (1969), e realizaram diversos trabalhos. “Com o material disponível que tínhamos, que era uma câmera, começamos a fazer filmes para o cinema. Realizamos então Arraial do Cabo. Joaquim Pedro estava na produção desse filme”, conta Saraceni. Arraial do Cabo foi premiado em Santa Margherita, Itália, dado omitido dos noticiários brasileiros da época.
Porto das Caixas, 1964, foi o próximo trabalho de Saraceni e um dos primeiros longas-metragens do Cinema Novo. Uma adaptação da obra de Lúcio Cardoso, escritor mineiro de Curvelo, radicado no Rio, autor de seis romances, seis novelas, três peças teatrais, um livro de poesia, um longa-metragem inacabado e dois roteiros. Esse filme foi o primeiro da trilogia de adaptações para o cinema de obras de Lúcio Cardoso, por Paulo César Saraceni, seguido por A casa assassinada (1970) e O viajante.
Então veio o golpe militar de 1964 que também tentou barrar o ideário do Cinema Novo. “Aconteceu a interrupção do processo. Era um momento político muito revolucionário. Foram tempos ricos, fortes e o Cinema Novo veio para marcar toda essa época”, declara.
O Cinema Novo constitui, como conjunto, a maior expressão de produção cinematográfica do Brasil. Era essencialmente política a proposta daqueles jovens cineastas: Saraceni, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Eduardo Coutinho, Joaquim Pedro de Andrade, Maurice Cappovilla, Ruy Guerra, Cacá Diegues e Nelson Pereira dos Santos, desnudando a realidade brasileira, em uma época — entre o Estado Novo e o golpe de 1964 — marcada por mobilizações de trabalhadores e estudantes, que visavam mudar a realidade de miséria e profundas injustiças sociais.
Havia uma enorme vontade de se fazer uma revolução cinematográfica. Para isso, inspiravam-se no neo-realismo italiano e no Cine-Olho russo, de Dziga Vertov — que construiu o filme documental ao registrar o dia-a-dia soviético, considerando o cinema como instrumento de difusão dos ideais revolucionários, mas, inventando uma nova fórmula, espontânea, ousada e propositalmente descolonizada em relação aos padrões de Hollywood.
O desafio ao sistema
Saraceni não se intimidou com o golpe e fez O desafio, um lance de verdadeira disputa contra o sistema, dez meses depois de se instalar. “Eu tinha planejado fazer um filme falando da libertação da mulher, como havia abordado em Integração Racial, mas veio o golpe e me fez mudar de idéia”, argumenta.
“Naquele momento parecia que tudo era proibido, ameaçador — com muitos tanques na rua — e eu fiz um longa-metragem violento contra a ditadura. Consegui realizá-lo em 23 dias, de uma forma bem improvisada, e com a câmera na mão. Posso dizer que neste filme realizei, por completo, a convicção de ‘uma idéia na cabeça e uma câmera na mão', porque não existe um plano sequer que não seja com a câmera na mão”, diz. Lembramos que câmera na mão significa, no caso, a filmagem sem o uso de apoio ou tripé.
“O filme relatava o que estávamos vivendo naquele momento. Um documentário subjetivo, porque falava da realidade em ficção. Corri com as filmagens para participar do Primeiro Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, realizado em Copacabana, em 1965”, acrescenta.
Mas, como já se esperava, O desafio foi barrado. Aprovado por toda a comissão do festival, mas barrado pelo seu presidente, o governador do Rio, na época, Carlos Lacerda, que participou do golpe — mais tarde, ao se sentir desprezado pelos golpistas, veio a se tornar “opositor”.
Novamente Paulo César Saraceni não se intimidou e conseguiu, junto à comissão que aprovara o filme, que ele fosse exibido paralelo ao festival. “Eles acharam que eu sofri uma injustiça e me deram o direito de exibi-lo informalmente, nos mesmos dias do festival, mas em local diferente, sem constar na programação e nem concorrer a prêmios oficiais”, explica.
Grandes cineastas internacionais, como Roberto Rosselini e Vincent Minnelli, estavam presentes no festival, além de gente de cinematecas do mundo inteiro. Saraceni tratou de espalhar para todos a notícia de que seu filme passaria em outro lugar, porquê e como. O resultado foi que O desafio acabou ganhando três prêmios, extra-oficialmente. Além disso, ficou conhecido por todo o Brasil e no mundo, com o desagrado da ditadura, o que trouxe alguns prejuízos para Saraceni.
Acusado de comunista, anarquista, marginal e tudo o mais que à ditadura interessasse atribuir às suas vítimas, sofreu perseguições nas décadas de 60 e 70, sendo preso, por várias vezes, e torturado. “Não quero falar desse assunto, só posso dizer que não foi nada fácil. Uma realidade muito dura. Desde garoto, sempre me envolvi em política. Quando ligado a Luiz Carlos Prestes, entregava cédulas do Partido Comunista pelas ruas. Adulto, preferi me desligar de partidos, mas defender um ideal”, lembra.
Além dos traços políticos, uma forte característica da obra de Saraceni é a presença da música: em O desafio, Maria Bethânia canta Carcará, no show Opinião. O filme tem também a presença musical de Mozart, Villa-Lobos, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso e Edu Lobo; Bahia de todos os sambas parece o show dos baianos, em Roma; em Porto das Caixas, a música foi criada por Tom Jobim, o que se repete em A casa assassinada e em O viajante. No Banda de Ipanema — a folia de Albino Pinheiro, fica documentado o trabalho da banda que, durante a ditadura militar, fazia política através da música.
E está tudo acertado para Saraceni. No próximo ano realizará mais um longa, produção que liga o Brasil à Itália, que terá cenas no Rio de Janeiro e em cidades italianas: Veneza, Milão, Verona e Nápoles. No elenco, a atriz italiana Isabella Rossellini, filha do cineasta Roberto Rossellini, além dos atores brasileiros Gianfrancesco Guarnieri, Ney Latorraca e Ana Maria Nascimento e Silva.
Com o título de Ângelo — espelho da memória, o filme é uma adaptação do romance, de mesmo nome, do advogado, escritor e irmão de Paulo César Saraceni, Sérgio Saraceni — autor também do recente Luzes de Copacabana. “É a trajetória de imigrantes italianos no Brasil, com relatos na Itália. Em partes, entra na minha própria vida, porque alguns personagens contam as histórias de parentes meus”, confidencia.
O filme toca em questões polêmicas. “Paralela à história de uma tia minha, há um personagem que se torna líder do sindicato dos bancários e, por isso, por defender os interesses revolucionários, é preso e torturado, não de maneira física, mas psicológica, porque tentam fazer com que se transforme em um traidor e entregue todos aqueles que participavam da guerrilha. Acredito que hoje ninguém vai me prender e nem me torturar por falar de tortura neste país”, brinca.
Saraceni acredita que já é tempo do cinema brasileiro retomar o seu lugar, praticamente destruído pela ditadura: “O cinema dos anos 60 e anos 70 foi algo importantíssimo. Agora todo mundo está acordando para saber como vai ser. E tem que haver mudanças; uma revolução democrática.”
Fonte: http://www.anovademocracia.com.br
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